terça-feira, 19 de agosto de 2014

O Caminho Incômodo.

Eu já li muita coisa do Gaiman.
Não li tudo, nem de longe, mas acho que é seguro dizer que já li mais da metade de sua obra.

Eu aprendi a reconhecer as diferenças em seus gêneros textuais. Eu já sabia o que esperar ao abrir um conto ou um romance, identificar uma linha e prever com uma quantidade razoável de acertos o resultado. Aprendi com o tempo. Ou eu achava que tinha aprendido.

Eu basicamente dividia a obra dele em duas categorias básicas: contos e romances. Poemas, novelas e afins incluídos no primeiro.

Eu não posso mais fazer isso.

E o motivo é um só: este livro.

Uma vez eu disse a uma amiga (e insisti bastante neste ponto) que O Oceano não é um livro do Gaiman, mas sim um conto de terror do Gaiman.

Não tenho certeza se ainda concordo comigo mesmo. E nem tenho certeza se discordo tampouco. Mas eu estou me adiantando.

O Oceano tem estrutura de livro, e conteúdo de conto. Como os contos de Fumaça e Espelhos, ou aquelas histórias publicadas apenas uma vez num número de uma revista ou antologia bem shady, e que te fazem pensar sobre ela durante dias depois de terminada.
O Oceano é incômodo e perturbador. A sensação que tive lendo-o é a mesma que tenho ao ler os contos de Cortázar, nominalmente As Babas do Diabo. É uma pulga atrás da orelha, que se apresenta através de uma espécie de frio na barriga, ao mesmo tempo incômodo, desagradável e delicioso. Viciante e frustrante. Deixa um gosto seco na boca, e o sentimento de que não poderia ter acabado ali, um desespero moderado.



Uma pausa. Eu adiei muito escrever sobre isto porque eu ainda não sabia como fazê-lo. Para falar a verdade, ainda não sei. Pensei em fazer uma resenha, mas não seria certo. Eu escrevi aqui duas resenhas sobre algo que eu adorei, e uma sobre algo que me decepcionou. E eu não adorei O Oceano. Tampouco posso dizer ele me decepcionou. Ele habita o espaço entre o "Amar de paixão", o "tem algo nele que me elude" e "não é o que eu esperava". Acho que o melhor é continuar como estou, relatando as minhas reações ao lê-lo.



A poética do Gaiman é perceptível aí. Há referências mitológicas, intertextualidade com outros livros dele,  alusões a personagens que aparecem em pelo menos três outras obras dele, importância da infância na idade adulta, mistério e originalidade. Dá quase para sentir os dedos de Caim na obra, e tenho certeza de que nunca vamos descobrir uma coisa, pequena e identitária, e isto me incomoda. Há algumas técnicas literárias que podem ser destacadas, em especial o mise en abyme e o tipo de narrador, que não comentarei para evitar possíveis spoilers.

O Oceano no Fim do Caminho não é uma leitura fácil. Não pela linguagem, mas pelo livro em si. E a tradução de baixa qualidade que a Intrínseca mais uma vez realizou não ajuda. Na minha lista de piores editoras brasileiras, a Intrínseca consegue superar a Rocco.
Eu deveria reler O Oceano. Mas não vou reler tão cedo, por uma razão similar à de eu não reler Entes Queridos: eu não estou preparado. Talvez nunca esteja.
Abaixo, duas edições. Uma é a edição de colecionador, limitadíssima, autografada e numerada, e a outra é a nova edição americana. A capa é mais bonita, e o autografo é bem humorado.



Este é um dos livros mais adultos e complexos que já li. Um dos mais diferentes também. E até hoje, quase um ano após lê-lo, pensar nele me traz aquele frio na barriga.


Não sei como terminar este texto de um gênero que não sei identificar. A GLaDOS teria uma forma imaginativa de terminar isto aqui, enquanto consegue sarcasticamente me insultar e ainda dar um jeito de inserir uma batata no meio. E uma torta.

Mas isto seria uma mentira maior que a torta.

2 comentários:

  1. Olá, Rafael.

    Seu texto me deixou com muita vontade de ler O oceano.
    Eu já estava pensando nisso há um tempo - como qualquer bom fã de Gaiman, embora acho que não tenha lido nem 30% do que você leu da obra dele - mas ler seu texto me fez ficar com ganas de pedi-los agora mesmo na internet rsrs

    É empolgante pensar que Gaiman pode ter escrito algo ainda diferente do que já escreveu. E digo isso porque sempre me impressiona a capacidade daquele ser místico de criar universos completamente independentes e autossuficientes. Não sei, mas dos autores que conheço Neil Gaiman certamente é o que considero o mais criativo.

    Já tinha procurado resenhas deste livro, mas esse seu texto que li - talvez por trazer sua paixão tão devota por Gaiman - foi o que mais me estimulou a lê-lo. Quando o fizer, volto para dizer o que achei.

    Um grande abraço.

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  2. Aquele momento no qual eu penso: é por isso que, apesar de você ser INSUPORTAVELMENTE CHATO, eu te amo!!! Eu já escrevi sobre "O oceano no meio do caminho", nós já discutimos sobre isso, e sobre muito mais, afinal discutir e divergir sobre literatura é quase nossa especialidade, mas esse texto foi no alvo.

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