terça-feira, 19 de agosto de 2014

Poesia, Luz, contos de fada e beleza: Child of Light.

Sabe aquela coisa que você vê e pensa "Eu tenho que ter isto", e imediatamente entra num hype colossal para tê-la?

Eu não tenho muito isso. E, aliás, se alguma coisa, o Steam me fez repensar o conceito de promoções. Comprar algo numa pré-venda é raríssimo para mim. O último tinha sido justamente Contrast, aquele meu amor S2.
Child of Light mandou e ainda manda uma reação incrível de desejo, paixão e carinho pelo jogo, que é, sob todas as análises, uma verdadeira obra de arte.

Tudo me encantava. Desde a voz da dubladora original ao estilo gráfico pintado à mão com aquarela, passando pelo cabelo belíssimo de Aurora, a premissa e os personagens ligeiramente estereotipados, típicos de contos de fada, e isto me fez forçar meu dinheiro na tela do computador e comprar na pré.

Eu me lembro de dizer que queria literalmente dar um abraço naquele jogo. E eu ainda quero.




Nunca gostei de jogos em turno. Os últimos que tinha jogado antes dele era Sonny (um joguinho de navegador) e Shining Force. A versão de Mega Drive.
Child of Light foi absolutamente tudo o que eu esperava (e olha que eu esperava muitíssimo) e ainda mais. A trilha sonora é linda, a ambientação e os gráficos foram ainda mais.

Cada única linha de diálogo foi feita com bastante atenção. Antes que eu fale mais sobre isso, assistam o trailer.



Capa com Aurora e Sir Firefly, o Vagalume.
Notaram algo? Sim, é dublado em português. O jogo todo é assim, na verdade. Tanto a dublagem quanto o texto (pode ser assim, na verdade, já que você pode escolher outros idiomas. A tradução para o português foi excelente. Prefiro a dubladora original, mas o voice tone pairing e a tradução per se foi excelente.).
Mas não é isso o que estou perguntando. Sim, aquela outra coisa. As rimas.
Absolutamente todas as linhas de diálogo são escritas em verso, e isto já valeria o valor do jogo.
Mas CoL não fica apenas em um jogo lindo, aquarelado e rimado. O roteiro é interessante, e deixa espaço para continuações, tanto para lore, quanto para personagens.
O trailer acima dá uma boa ideia sobre o tema.

A jogabilidade é incrível (embora seja muito melhor se você tiver um controle) e o combate é bem interativo e intuitivo.
Dificilmente alguém conseguirá todas as skills no primeiro jogo, já que a partir do nível 45 é necessário muito XP para upar. No entanto, CoL conta com New Game +, e aí sim dá pra dar master.
Os combates são nivelados e intuitivos, e as animações de batalha são condizentes com o estilo do jogo: simples, belas e bem trabalhadas para cada personagem.
Durante os combates, quando a HP cai abaixo de 30 ou 40% (não lembro de cabeça), dá para notar que o personagem está abatido, cansado, cada um do seu jeito. Aurora fica cabisbaixa, e com a espada mais frouxa, Finn abaixa um pouco o cajado etc... As animações de dodge e ataque são exclusivas de cada classe também.
A animação do cabelo de Aurora, que tem uma importância simbólica moderada, é a melhor e mais linda que já vi, e roubou o primeiro lugar de Alice, de Alice: Madness Returns. O terceiro é da Lara do último Tomb Raider.
Crafting de itens trabalha de forma similar ao de Diablo 2, embora muito mais enxuto, e as gemas muuuuuuuuuito mais comuns.
A física per se também é simples, imaginativa e bela. Voar perto de água é fantástico.

Aurora em pleno voo.


Chega de tecnicalidades, vamos voltar ao que interessa!!! Beleza, poesia e intertextualidades!

Os diálogos dos personagens são espirituosos, em rima, e a construção de cada personagem é redonda, embora muitos sejam arquétipos comuns na literatura, como a dialogia palhaço triste/palhaço bufão.
Há referências a diversos contos de fada e obras da literatura fantástica. Para dizer apenas os mais conhecidos, temos Branca de Neve, Cinderella, a própria Bela Adormecida (qual era o nome da Bela Adormecida mesmo?) e, para minha eterna alegria, O Mágico de Oz (hint hint este personagem reclama que lhe falta uma parte de si, e que não consegue sentir como deveria).


O simbolismo é bonito e inteligente. A coroa foi uma das sacadas mais bonitinhas que já vi. Sob última instância, para um jogo 2D, tem tantos caminhos que eu me perdi mais de uma vez.




Como não amar algo pintado em aquarela?
E com tantos detalhes?




E com tanta expressividade?


Um detalhe que não comentei: apenas a narradora tem voz. Todos os outros personagens falam por meio de texto, o que foi uma mudança agradável no mar de jogos por aí.

Raramente compro qualquer coisa na pré-venda, e muito menos com o preço completo. Paguei em Child of Light e não me arrependi.

Tenho uma implicância considerável com a Ubisoft (distribuidora do jogo), e CoL foi a primeira vez que disso: espero que a Ubi faça uma franquia de CoL. Eu compraria.

A Ubi se redimiu novamente da série de cagadas besteiras que tem feito com Valiant Hearts, mas por mais belo e emotivo que VH tenha sido, não chega ao par que é Child of Light.

E tem mais uma coisa que me fez amar esta lindeza: Aurora, a Filha da Luz, teve na sua edição de colecionador um poster exclusivo de Yoshitaka Amano, desenhista da versão original de Sandman: Caçadores de Sonhos. De novo, como não amar?
Ainda vou comprar essa edição de colecionador



Aurora é a protagonista que eu tanto queria num jogo, viva. Ela mexe com tudo o que eu sempre gostei, e isto inclui, mas não se limita a beleza, poesia, contos de fada, releituras, dragões, referências a diversas obras, metamorfoses, simbolismo e arte.

Baum disse sobre O Mágico de Oz "Ele aspira a ser um conto de fadas moderno, em que o espanto e alegria são mantidos e os sofrimentos e pesadelos são deixados de fora", e Chesterton que "Contos de fada não dizem às crianças que dragões existem. Crianças já sabem que dragões existem. Contos de fada dizem às crianças que dragões podem ser mortos".

Child of Light foi uma mescla de ambos os anteriores: é a criação de um conto de fadas moderno, com espanto e alegria, e que mostra seus dragões, e nos mostra como eles podem ser derrotados.

Child of Light é amor em forma de jogo, e sob última análise, escolheu o caminho menos viajado. E isto fez toda a diferença.

O Caminho Incômodo.

Eu já li muita coisa do Gaiman.
Não li tudo, nem de longe, mas acho que é seguro dizer que já li mais da metade de sua obra.

Eu aprendi a reconhecer as diferenças em seus gêneros textuais. Eu já sabia o que esperar ao abrir um conto ou um romance, identificar uma linha e prever com uma quantidade razoável de acertos o resultado. Aprendi com o tempo. Ou eu achava que tinha aprendido.

Eu basicamente dividia a obra dele em duas categorias básicas: contos e romances. Poemas, novelas e afins incluídos no primeiro.

Eu não posso mais fazer isso.

E o motivo é um só: este livro.

Uma vez eu disse a uma amiga (e insisti bastante neste ponto) que O Oceano não é um livro do Gaiman, mas sim um conto de terror do Gaiman.

Não tenho certeza se ainda concordo comigo mesmo. E nem tenho certeza se discordo tampouco. Mas eu estou me adiantando.

O Oceano tem estrutura de livro, e conteúdo de conto. Como os contos de Fumaça e Espelhos, ou aquelas histórias publicadas apenas uma vez num número de uma revista ou antologia bem shady, e que te fazem pensar sobre ela durante dias depois de terminada.
O Oceano é incômodo e perturbador. A sensação que tive lendo-o é a mesma que tenho ao ler os contos de Cortázar, nominalmente As Babas do Diabo. É uma pulga atrás da orelha, que se apresenta através de uma espécie de frio na barriga, ao mesmo tempo incômodo, desagradável e delicioso. Viciante e frustrante. Deixa um gosto seco na boca, e o sentimento de que não poderia ter acabado ali, um desespero moderado.



Uma pausa. Eu adiei muito escrever sobre isto porque eu ainda não sabia como fazê-lo. Para falar a verdade, ainda não sei. Pensei em fazer uma resenha, mas não seria certo. Eu escrevi aqui duas resenhas sobre algo que eu adorei, e uma sobre algo que me decepcionou. E eu não adorei O Oceano. Tampouco posso dizer ele me decepcionou. Ele habita o espaço entre o "Amar de paixão", o "tem algo nele que me elude" e "não é o que eu esperava". Acho que o melhor é continuar como estou, relatando as minhas reações ao lê-lo.



A poética do Gaiman é perceptível aí. Há referências mitológicas, intertextualidade com outros livros dele,  alusões a personagens que aparecem em pelo menos três outras obras dele, importância da infância na idade adulta, mistério e originalidade. Dá quase para sentir os dedos de Caim na obra, e tenho certeza de que nunca vamos descobrir uma coisa, pequena e identitária, e isto me incomoda. Há algumas técnicas literárias que podem ser destacadas, em especial o mise en abyme e o tipo de narrador, que não comentarei para evitar possíveis spoilers.

O Oceano no Fim do Caminho não é uma leitura fácil. Não pela linguagem, mas pelo livro em si. E a tradução de baixa qualidade que a Intrínseca mais uma vez realizou não ajuda. Na minha lista de piores editoras brasileiras, a Intrínseca consegue superar a Rocco.
Eu deveria reler O Oceano. Mas não vou reler tão cedo, por uma razão similar à de eu não reler Entes Queridos: eu não estou preparado. Talvez nunca esteja.
Abaixo, duas edições. Uma é a edição de colecionador, limitadíssima, autografada e numerada, e a outra é a nova edição americana. A capa é mais bonita, e o autografo é bem humorado.



Este é um dos livros mais adultos e complexos que já li. Um dos mais diferentes também. E até hoje, quase um ano após lê-lo, pensar nele me traz aquele frio na barriga.


Não sei como terminar este texto de um gênero que não sei identificar. A GLaDOS teria uma forma imaginativa de terminar isto aqui, enquanto consegue sarcasticamente me insultar e ainda dar um jeito de inserir uma batata no meio. E uma torta.

Mas isto seria uma mentira maior que a torta.