segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Leituras na infância, Lobato e museus.




“Eu sou Erica Bain e, como vocês sabem, eu caminho pela cidade. Eu reclamo e resmungo, mas eu caminho e observo e escuto... Testemunha de toda a beleza e feiura que está desaparecendo da nossa amada cidade.
Semana passada, minha caminhada me levou às profundezas cinzetas do East River, onde Dimitri Pachencko nada durante as manhas, desde os anos 60.
Hoje eu caminhei pelos quilômetros de andaimes do lado de fora do que era o Plaza Hotel... E eu pensei em Eloise. Lembram da Eloise de Kay Thompson? Eloise morava no Plaza Hotel, com seu cachorro Weenie e seus pais, que sempre estavam viajando, e sua babá inglesa, que tinha oito presilhas de cabelo feitas de ossos.
Essa Eloise. A encrenqueira adorável da minha infância. Uma pimentinha…
Sid Vicious, derramando cerveja dos dentes no Chelsea Hotel.
Andy Warhol, com seus óculos escuros…
Edgar Allan Poe, libertando macacos vivos das caixas de uma escuna naufragante nas margens oleosas da South Street.
Histórias de uma cidade que está desaparecendo diante dos nossos olhos. Seu povo varrido.
Então, o que sobrará dessas histórias?
Nós teremos que construer uma cidade imaginária para abrigar nossas memórias?
Porque quando você ama algo, cada vez que um pedaço disso se vai, você perde um pedaço de si mesmo.
Então, onde Eloise vai dormir hoje?
Você pode ouvir o seu fantasma, caminhando pelos corredores decadents do seu amado Plaza, tentando encontrar o quarto de sua babá, perguntando aos trabalhadores, numa voz que ninguém escuta ‘você viu a minha tartaruga, Skipperdee?’?”


Meu nome não é Erica Bain. Mas eu adoro caminhar pelas cidades. Em especial, sozinho.
A graça é que eu achei Valente o filme mais fraco da Disney,
e que eu amei Valente. Já podem rir.

Me lembrei deste monólogo da adorável, charmosa e perfeita Foster enquanto caminhava sozinho pelo MAM na quarta passada, vendo obras de arte moderna e me lembrando da minha esquecida constatação de que eu gosto bastante de arte moderna, embora não ache que seja o tipo de coisa que deve ser pendurada na parede da casa de alguém, ao contrário da arte modernista, que eu simplesmente não gosto (embora reconheça a importância).
As palavras da Bain em Valente me assombram há muito tempo, num dos filmes mais emocionais que já vi. Acho que já fiz menção a esta citação antes. Não tenho certeza. E pensei que seria uma ótima forma de começar este post, que nasceu de um pedido de uma amiga há algumas semanas.



Eu nunca li os livros da Eloise. Vi os filmes quando criança, possivelmente na Globo, mas assim como Nárnia, que só vim a ler depois de ter barba e uma porção de cabelo branco precoce (um minuto de silêncio, por favor. Já deu um minuto? Então tá, pode seguir a leitura.), os livros não fizeram parte da minha infância.
Skiperdee tá ali. Rimou.
Comecei minha “carreira” literária como todos começam, ouvindo histórias contadas pelos mais velhos. Minha mãe lia para mim contos de fada os europeus e minha avó paterna às vezes me contava histórias da mitologia* brasileira. Na época eu gostava um pouco mais das histórias que minha avó contava, mas não era particularmente fã desta última também. Os filmes da Disney eu já gostava bastante... Em especial Mulan, meu amor eterno.
Pouco depois de eu aprender a ler, minha mãe deu definitivamente o pontapé inicial no meu maior vício, ao fazer uma assinatura das revistas da Turma da Mônica para mim. Isto foi o que me deu efetivamente o gosto pela leitura.
(*deixando registrado aqui que não sou um daqueles chatos que faz separação hierárquica da cultura erudita/popular, apenas prática, e que acho que não há nada mais belo do que o registro que o povo guarda das suas tradições).




Ainda tenho bem guardadas as mais de 200 revistinhas. Eu adorava. Li durante três anos, ou algo assim, e de vez em quando volto à minha coleção. Não gosto dos números que surgiram depois disso, no entanto.
Aquela edição com eles adolescentes meio que me irrita e faz meu primordial instinto de implicante gritar dizer que não devo chegar perto. As edições normais também parecem ter perdido a qualidade, mas devo admitir que há a possibilidade de que eu apenas mudei de gosto. Foi o meu "Entre profundamente no reino das palavras."


Quando eu tinha uns 6 anos, eu estava no cinema e vi um trailer de um filme que me encantou incrivelmente: Harry Potter e a Pedra Filosofal. Não lembro o que aconteceu primeiro, se eu vi o filme e depois o livro ou se o contrário.
Mas eu li. E muito.

A Rowling marcou minha infância e é a representação máxima da literatura estrangeira na minha infância e parte da adolescência. Hoje em dia eu tenho uma série de críticas ao rumo que ela deu à série e a ela também, em virtude de alguns comentários que ela fez sobre algumas coisas, nominalmente ao C.S. Lewis, de quem falarei mais adiante. No entanto, ler sobre como um certo senhor de barba branca pontuda estava na porta do escritório do Sr. Dursley ainda me traz um sorriso, e ler sobre a morte desse mesmo senhor ainda é certo de me trazer algumas lágrimas.
Acho que nunca escutei que alguém dissesse simplesmente “Não gosto de Harry Potter, acho insuportável”.
Através de Harry Potter eu ouvi falar do Gaiman pela primeira vez (e pela segunda também, na verdade), nas alegações de plágio a Os Livros da Magia.


Aos oito anos eu li O Alquimista e adorei. Muito. Não vou entrar na discussão se Paulo Coelho é literatura ou não, acho isso muito inútil cansativo.
Nos dois anos seguintes eu li vários livros do Coelho, mas acho que até hoje o que mais gostei é O Alquimista. Hoje em dia, com outra mentalidade, não sou mais grande fã do estilo literário dele, em especial no que tange a auto-ajuda, movimento hippie e entorpecentes, mas não sou nem hipócrita e nem caxias para dizer que não leio ainda hoje.
Ao mesmo tempo eu lia a Coleção Vagalume, em grande parte influenciado pela bibliotecária do meu colégio, dona Lígia, uma pessoa muito agradável que me recomendava sempre um livro para levar para casa. Muito amor por bibliotecários S2

Intervalo comercial: já escutaram Shake Sugaree? Adoro essa música desde o momento em que a descobri. A Cotten é uma fofa. *--*



Ok, lá para os meus dez anos eu li Sidney Sheldon. Eu AMAVA. Hoje em dia eu sou chato, implicante e crítico da receita pronta e amalgama de clichês que são muitos dos livros dele, mas Tracy Whitney foi uma das minhas primeiras paixonites, e acho seguro afirmar que vem daí meu gosto pelo estilo explícito de Manara e Gostos.
Tentei não falar de pornografia ao falar de Sheldon, mas eu. Não. Resisto. 

Aos 13 eu ganhei meu primeiro livro do Gaiman (e Terry Pratchett), Belas Maldições. A partir daí meu gosto literário se especializou na literatura fantástica (tanto cânone quanto contemporânea); releituras; contos de fadas, mitologias e afins; literatura fantástica latino-americana e um pouco de ficção científica.
Acho que posso dizer aqui sem ser apedrejado que também gosto da literatura erótica (nominalmente de Cortázar, com As Babas do Diabo e A Senhorita Cora e do erotismo presente nas músicas de Florence and the Machine, em especial Spectrum e Howl, entre todas as outras.

Em algum momento da minha infância pararam nas minhas mãos livros do Dan Brown (que eu acho preferível ao Umberto Pedante Eco), Philip Pullman (que eu não gostei na época e gosto menos ainda hoje) e livros de mitologias em geral. Estes últimos tenho em grande estima, sempre e para sempre.
 (um aposto antes de ir ao próximo tema: não tenciono discutir também se a literatura faz apologia a discursos de ódio ou se os denuncia, isto é uma questão de ideologia do leitor, já testemunhei debates bastante acalorados quanto a este tema e ambos os lados tem argumentos que reconheço como válidos).



Apesar de tudo, o maior nome na literatura nacional para mim era o Monteiro Lobato. Conheci através do Sítio do Picapau Amarelo que passava na Rede Globo. Lembram da Eloise da Bain, procurando Skipperdee? A minha era a Emília, aquela Emília que diz “Sr. Hércules, afogue o Leão de Neméia”. Aquela Emília linda e fofa com pintinhas leves no rosto, interpretada pela Isabelle Drummond foi (e segue sendo), sem sombra de dúvidas, minha primeira paixonite. Minha relação com Lobato é de amor e ódio. Amava quando criança, me distanciei durante a adolescência, voltei a me aproximar nos últimos anos. Em leituras mais recentes, percebi coisas que não tinha notado antes, e isto me deu uma certa tristeza (e vontade de atirar pedras). A vontade de jogar pedras passou quando notei que estava julgando um autor nascido há mais de um século com a mentalidade e ideologia que se tem hoje.
O pesar continua.

Não estou dizendo que a ideologia racista dos diários e cartas de Lobato seja agradável, muito pelo contrário. Mas acho pura estupidez o movimento que visa censurar os livros do homem. Ao invés disso, me parece muito melhor ensinar aos leitores que alguns dos discursos veiculados por ele pertencem a uma época à qual não devemos voltar.



Comparo sempre Lobato a C.S. Lewis: ambos fazem parte do cânone da literatura fantástica e da literatura infantil, tendo criado universos que influenciaram muitas obras subsequentes e ambos são polêmicos hoje em dia, com uma multidão de escritores, leitores, pesquisadores e professores criticando tanto as pessoas quanto às obras em um número de pontos, como racismo, misoginia e a forma de representação dos elementos de interesse.
Daí surge a minha crítica ao posicionamento da Rowling e minha implicância com Pullman é reacendida com força: ambos julgam Lewis com base no que se entende hoje como correto, sendo que Lewis morreu antes sequer do nascimento dela, e é impossível negar o quanto Lewis influenciou Pullman. Influenciou tanto que poderíamos dizer aquela palavrinha que começa com "p" e que os críticos de editoras favoráveis substituiriam por "releitura". But that's none of my business.



De todos os textos que li falando sobre Nárnia, um dos poucos que teve sensibilidade e tato o bastante foi O Problema de Susan, de ninguém menos que... o Gaiman. Deixando de lado o meu amor natural por ele, O Problema de Susan tem delicadeza para se dirigir a um tema difícil. Para quem ainda não leu, está em Coisas Frágeis, e é um conto extremamente perturbador, emocionante, forte e que lembra que nós não somos juízes.
Acho difícil ler o conto e não se sentir tocado pelos personagens e pensar em Susana de uma outra forma. Não recomendo a leitura para quem ainda não leu os sete livros d'As Crônicas de Nárnia.

Voltando a Lobato: deve ter uns cinco anos desde que li algo relacionado ao Sítio do Picapau Amarelo, a última obra dele que li foi O Presidente Negro, que me dá uma mescla de indignação e tristeza.
Mas terça passada, minha paixonite pela Emília foi reacendida com força, bem como os meus problemas com o Pessoa, heterônimos e ortônimos foram amenizados, problemas estes nascidos da pura implicância do aluno que teve que engolir Pessoa durante cinco anos seguidos.



Lembram quando eu disse que gostava de caminhar, e ainda mais sozinho?
Na terça eu estava com alguns familiares no lugar que mais me encantou em São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa, um lugar que é amor em seu estado mais puro. É um lugar encantador, onde eu poderia passar um dia inteiro brincando com os monitores com informações sobre a etimologia, pronuncia e significado de diversas palavras, brincando de formar palavras no Beco das Palavras e vendo a linha do tempo.

Esta parte é agradabilíssima, mas não é o melhor. Tampouco é o vídeo apresentado lá.
O mais lindo é a Praça da Língua, que é definido como “uma experiência multimídia”.

Eu não colocaria com essas palavras.
Eu usaria uma série de adjetivos, partindo de “perfeição” e parando em “emocionante”, com largas escalas em “único”, “belo”, “genial” e “profundo”.
Durante os cerca de 20 minutos de duração, eu experimentei uma mescla de sensações. Fui absorvido pela sensação maravilhosa de que eu estava andando sozinho ali, assistindo aquela procissão de citações, interpretações e leituras de obras escolhidas à mão e colocadas na ordem adequada.





No link abaixo está uma gravação feita por alguém (comentário óbvio é óbvio). Caso resolva ir lá, recomendo fazer sua programação tendo em mente que dia de terça o MASP e o Museu da Língua tem entrada franca, e que o Theatro Municipal tem visitas guiadas gratuitas terças e quintas. O vídeo todo vale à pena ser assistido.

Em 05:35 está a razão para eu ter me lembrado que minha relação de amor e ódio com Lobato pende para o lado do amor, da minha paixonite pela Emília e de eu ter vertido algumas lágrimas solitárias no escuro.



(caso o link se torne indisponível por algum motivo, tentarei dar uma marcação de spoiler à citação. Acho que passar o mouse em cima revela o texto.)

"[Emília]
-A vida, senhor Visconde, é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme e acorda, dorme e acorda, até que dorme e não acorda mais [...] A vida das gentes neste mundo, senhor Sabugo, é isso. Um rosário de piscado. Cada pisco é um dia. Pisca e mama, pisca e brinca, pisca e estuda, pisca e ama, pisca e ama, pisca e cria filhos, pisca e geme os reumatismos, e por fim pisca pela última vez e morre.
-E depois que morre? - perguntou o Visconde.
-Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?"

Monteiro Lobato, em Memórias de Emília (1936).



O primeiro que pensar em falar em ABNT vai levar um tiro virtual. Ou não virtual, quem sabe, já está tarde e eu estou no meio de uma nova xícara de café originalmente descafeinado que eu fiz virar cafeinado, e posso estar enganado, mas acho que estou prestes a descobrir que misturar decaf com caf não é bom para quem está prestes a enfrentar A Besta Nojenta Temida.